Textos

Os Selos de Aluísio
Dona Feliciana havia acabado de colocar o alho para dourar com a cebola, no seu famoso tempero de feijão, quando ouviu a campainha. Quem será a essa hora? – pensou, enquanto apagava o fogo e caminhava até a porta. Pelo olho-mágico, não viu ninguém:

- Quem é? – perguntou.

Viu as cartas balançando, seguras à altura do visor por uma mãozinha miúda. Sorriu enquanto abria a porta, para deparar-se com Aluísio, o filho do porteiro, em sua tarefa matinal favorita: a distribuição da correspondência. No início, os moradores não queriam que seu Francisco atribuísse atividades do condomínio para o pequeno, temerosos de problemas com a justiça trabalhista. Mas o próprio Aluísio pediu, implorou e tanto insistiu que acabaram aceitando. E, todos os dias, antes de ir à escola, o garoto colocava as cartas em ordem e ia, de porta em porta, distribuí-las. Além do prazer de ajudar o pai, porém, o menino tinha outro interesse: os selos.  E, assim que colocou a correspondência na mão de Feliciana, pediu:

- Posso ficar com os selos?

Ela sorriu novamente. Gostava do garoto. Cuidadosamente, rasgou os cantos dos envelopes, entregando-os a ele.

Poucos eram os moradores do prédio que lhe negavam o pedido e Aluísio já tinha uma razoável coleção. Ele não era filatelista. Seu prazer era inventar estórias para as pequenas figuras coloridas. Colava as estampas no caderno e escrevia, em letrinha miúda e redondinha, contos sobre pessoas e lugares de sua imaginação.

Seu gosto pela escrita lhe fazia um bom aluno e anos mais tarde, muitos cadernos e selos depois, Aluísio estava às vésperas do vestibular. Tinha grandes chances de ser aprovado, quando seu pai adoeceu e precisou ficar uns meses afastado pelo INSS. O condomínio precisava de outro zelador e, para não perder o emprego e a moradia, seu Francisco pediu ao filho que assumisse a função temporariamente em seu lugar, no que foi pronta e alegremente atendido. O sonho do vestibular teve que ser cancelado. Não havia cursos noturnos na universidade federal e ele não teria condições de pagar uma faculdade particular. Todos acreditaram que o rapaz ficaria mortificado, mas ele apenas procurava escrever ainda mais, lindas histórias sobre superação e vitória.

Os moradores tentaram ajudá-lo. Se todos contribuíssem com uma pequena parcela mensal, seria possível arcar com a mensalidade da faculdade. Mas a adesão foi pequena, havia muita gente nova no prédio, muitos nem sabiam quem era Aluísio. O problema não parecia ter solução.

Dona Feliciana havia acabado de colocar o alho para dourar com a cebola, quando sua filha Eunice entrou correndo pela porta, carregando um jornal nas mãos e gritando, eufórica, para que a mãe lesse a notícia. Um grande concurso de contos, com premiação em dinheiro. Foi a única vez que o famoso tempero de dona Feliciana queimou. Correu com a filha para mostrar o jornal a Aluísio. O prêmio não daria para pagar a faculdade toda, mas, pelo menos, o primeiro semestre, já era um começo. Ele logo buscou seus cadernos e junto com as duas mulheres, selecionou seus melhores contos, para que Eunice providenciasse a inscrição.

Venceu o concurso. Dentre os jurados, um grande editor, encantado com a qualidade literária do rapaz publicou seus contos num livro muito vistoso, intitulado “Os Selos de Aluísio”. Com a participação nos lucros de venda do livro, Aluísio pode custear a faculdade. Na noite da formatura, eleito orador pelos colegas, ao final de seu belo discurso, com muitos agradecimentos e homenagens, leu um poema, escrito quando ainda era um garoto, pequeno demais para ser visto através do olho-mágico:

Obrigado vizinhos por me darem seus selos
Imagenzinhas coloridas como os sonhos que tenho
De um dia ser alguém e viajar pra longe
E escrever cartas que trarão alegria
E que talvez ajudem a um outro garoto como eu
A viajar pelo mundo
Nas linhas da imaginação


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Este texto foi escrito sob encomenda para comemoração do Dia Naciona do Selo e Dia do Escritor, e publicado no noticiário Rede Agência em julho/2007, de circulação interna na agências da ECT.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 24/06/2008
Alterado em 03/09/2012


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