Textos



O Organizador do Bolão


Oriel acotovelou-se com os outros para entrar no ônibus, já lotado. Seguia aborrecido por haver esquecido, em sua gaveta, os jogos do bolão da megasena. O sorteio seria naquela noite mesmo, mas ainda teria que ir ao trabalho no dia seguinte para saber se nunca mais precisaria trabalhar na vida. Riu-se de sua ingênua esperança. Era o organizador do bolão há anos e, neste período, só haviam feito uma quadrinha. O prêmio, uma merreca, converteu-se em novas apostas, que, por sua vez, não deram em nada.
À noite, em casa, pediu ao filho que prestasse atenção ao noticiário e anotasse o resultado, deixando sobre sua mesinha de cabeceira, para que pudesse fazer a conferência na manhã seguinte.
Tomou um banho, jantou e saiu para ver o jogo no boteco com os amigos. Não, sem antes brigar um pouco com a mulher, como de costume. Se ganhar, largo essa vaca!, pensou consigo, como das outras vezes em que brigavam às vésperas do sorteio. Ao chegar, à noite, meio bêbado, enfiou o papelzinho com o resultado na carteira.
Na manhã seguinte, acordou cedo, arrumou-se e seguiu para o trabalho, uma ansiedade incomum apressando-lhe os passos. Entrou, pegou as apostas e o papelzinho, foi conferindo os jogos, até que:
– Três, vinte e sete, vinte e nove, trinta e dois, quarenta e nove e cinqüenta e quatro. – murmurou, ticando os números.
Não podia acreditar. Repetiu a conferência e continuava não acreditando. Eram seus números. Eram os números que jogava sempre, fosse sozinho ou no bolão: três, o número de filhos; em seguida, a idade que tinha quando cada um nasceu; depois as idades que o pai e a mãe tinham, ao morrerem. Não havia percebido antes, pois a anotação do menino estava fora de ordem.
Olhou em volta. Ninguém havia chegado ainda, estava sozinho. Foi, aos poucos, sendo invadido por um enorme desconforto. Havia trinta e cinco pessoas no bolão. O acumulado ia por volta dos quinze milhões. Descontando os impostos, talvez cada um tirasse uns quatrocentos mil... De repente, a certeza: não podia dividir o prêmio com os outros. Eram seus números! Seus números!! Não era justo que os seus números tivessem rendido o prêmio e ele fosse obrigado a reparti-lo com os colegas. O que faria com quatrocentos mil? Uma casa melhor, um carro... Mas, quinze milhões? Quinze milhões era a felicidade em cédulas novas! Largaria a mulher, dava lá um trocado para ela calar a boca, pegava os meninos e ia conhecer o mundo... Ia para a Disney. Queria andar na montanha russa, descer naqueles toboáguas dos filmes, queria beijar a boca da Minnie... Tinha fetiche por ela, desde moleque...
As fantasias sobre sua nova vida a bordo de quinze milhões menos impostos, foram interrompidas pela chegada de um colega:
– E aí, cara? Fizemos alguma coisa?
Pego assim, de surpresa, não conseguiu mentir. E odiou-se pelo resto do dia, enquanto os amigos comemoravam e faziam planos. Deram entrada no pedido de resgate na Caixa e, no dia seguinte, poderiam pôr a mão na grana. Naquela noite, enquanto todos comemoravam, inclusive a esposa que já sonhava com uma geladeira nova – quatrocentos mil reais e a única coisa que essa imbecil pensa é uma geladeira nova!! –, Oriel, foi dormir amargurado.
Acordou na manhã seguinte e, ao contrário do que esperava, ela não o encheu com suas tolices sobre o que fariam com o dinheiro. De fato, sequer dirigiu-lhe a palavra, exatamente como na véspera. Ele tomou o café e saiu, cabreiro com a atitude dela. Chegou ao ponto de ônibus e observou, com estranheza que o cenário era idêntico ao da véspera. As mesmas pessoas, dispostas da mesma forma. Estava certo disso, pois havia observado a japonesinha com uma grande Minnie desenhada no casaco, parada mais adiante. Viu quando ela comprou balinhas e posicionou-se para esperar o transporte. Viu que ela pegou o ônibus para a UnB. Viu passar o da Esplanada e só então, o seu, para o SIA. Automaticamente, conferiu o relógio. Lembrava-se de ter conferido a hora na véspera, assim que entrou no ônibus. Seis e vinte e três. Igual!
Ao pagar a passagem, lá estava, na carteira, o papelzinho com o resultado do jogo. Isso estava ficando mesmo esquisito. Tinha certeza de ter descartado a anotação. Olhou em volta, as mesmas caras. A senhora cochilando, apoiada na janela, a outra com um molequinho no colo, a quem tentava distrair brincando de bater palminha. Viu um sujeito com o jornal aberto. Apertando os olhos, viu o cabeçalho na primeira página: quinta-feira. Ainda não era uma certeza, já que o cara poderia estar olhando jornal velho, exceto por um detalhe: ele conversava com um rapaz ao seu lado, falando do empate do timão, exatamente como havia acontecido na manhã anterior. De repente, o pânico:
– Sonhei! Meu Deus!! Foi tudo um sonho!! Não tenho o prêmio, nem mesmo os quatrocentos mil!!
Desceu do ônibus em sua parada e praticamente correu até o trabalho. Abriu a gaveta com estardalhaço, jogando alguns papéis no chão. Pegou os jogos e pulou os primeiros, lembrava-se que o jogo premiado era mais ao meio da tira e, de fato, lá estava ele.
Desta vez, beliscou o braço com força para certificar-se de estar acordado. Deu um pequeno grito. A verdade dói!, pensou, enquanto esfregava o local dolorido.
Não sabia o que estava acontecendo, mas decidiu não perder tempo. Estava convencido de que o dia havia recomeçado para lhe dar a chance de guardar seu prêmio só para si mesmo. Não era justo dividir seus números com os outros! Pegou os jogos e ganhou a rua novamente, certo de não ter sido visto por ninguém. Na hora de abertura da agência da Caixa, foi solicitar o prêmio. Ainda teria que ficar escondido até o dia seguinte, mas poderia passar a noite em algum hotelzinho no Núcleo Bandeirante, nunca o encontrariam ali. Quando ia saindo do banco, os colegas o aguardavam na porta, irados. Foi salvo do linchamento pelos seguranças da agência. Os colegas haviam desconfiado de suas intenções quando não o encontraram no escritório pela manhã. Todo mundo na delegacia, em acalorada discussão, no final, fizeram um acordo: a parte dele ficaria reduzida pela metade, “para deixar de ser esperto”, como disse o delegado. E, para evitar que tentasse alguma gracinha no dia seguinte, quando fossem buscar o dinheiro, ele passaria a noite no xadrez.
Sentado numa cela, ele se lamentava:
– Idiota! Com tanta agência da Caixa pra ir, tinha que ser a que fica do lado do trabalho!
Demorou a conciliar o sono, enraivecido pela chance perdida, pelo prêmio reduzido, pela bronca que levaria da mulher e que teria que aceitar de cabeça baixa...
Acordou na manhã seguinte, sacudido por ela, que ainda estava zangada com ele. Não podia acreditar. Estava novamente em seu quarto, a cretina ali toda emburradinha, sem saber de nada!! Conferiu os números no papelzinho, correu para o trabalho, pegou a tira com os jogos e tomou o primeiro ônibus para o Núcleo Bandeirante, onde encontrou um hotel vagabundo para hospedar-se. Só então lembrou-se que os filhos correriam perigo, pois os colegas poderiam descontar neles sua frustração. Ligou, pedindo a esposa que fosse buscá-los na escola e seguisse ao seu encontro. Argumentando que o menino tinha prova, a sonsa não quis ir buscá-lo antes de jeito nenhum. Era o mesmo que discutir com uma porta. Ele desistiu:
– Está bem! Mas fica esperta! Não deixa ninguém te seguir!
Ligou a TV e esperou a abertura da agência da Caixa. Depois de solicitar o prêmio, voltou para o hotel e deitou-se, até que a família chegasse. Cochilou no finalzinho da manhã. Foi acordado por um alarido no corredor. Abriu a porta para deparar-se com a mulher e os filhos, completamente apavorados, cercados pela turba enfurecida de seus colegas. Desta vez, não houve polícia que evitasse. Apanhou muito. Apanhou tanto, que acordou por volta das dez da noite, no hospital. Ao seu lado, a esposa preocupada.
Com um enorme tubo plástico enfiado na boca, não conseguiu xingá-la como queria pela estupidez de ter levado seus algozes até seu esconderijo. O corpo todo doía, pensou que ia morrer. E ela ali ao seu lado, toda carinhosa e gentil, ajeitando-lhe os travesseiros. Se pudesse, iria sufocá-la com os malditos travesseiros, mas estava quase certo de não ter um único osso inteiro no corpo. Adormeceu chorando de dor e raiva.
Foi acordado por ela novamente, no dia seguinte. Em sua cama! Não podia acreditar. Apalpou-se e viu que estava bem. Olhou a carteira, lá estava o papelzinho:
– Que dia é hoje? – perguntou.
– Quinta-feira. – ela resmungou irritada, enquanto se vestia.
Levantou-se de um salto, feliz da vida. Abraçou-a, beijou-a como se beijasse a Minnie, apesar dos protestos dela. Pediu-lhe desculpas por estar sendo tão irascível nos últimos dias, o que pareceu amansá-la um pouco. Saiu para o trabalho, como renascido fosse. Estava decidido: se seu destino era dividir o prêmio, iria dividi-lo alegremente... Quatrocentos mil reais era realmente um bom dinheiro, daria para por ordem na vida, mudar para um apê mais perto do trabalho ou ainda, quem sabe? Ficar um tempo sem trabalhar, estudando para concurso...
Ao chegar ao escritório, não quis conferir logo os jogos. Esperaria a chegada de mais alguns colegas, para não cair em tentação.
Cerca de meia hora mais tarde, resolveu fazer a conferência. Para não levantar suspeitas, começou do primeiro jogo. Ao olhar o papelzinho, porém, não pode acreditar. Na letra ruim do garoto, lia-se: vinte e cinco, cinqüenta e cinco, trinta e sete, dois, quinze e quarenta e cinco.
– Cadê os meus números? – perguntou, em voz alta.
Os colegas mais próximos levantaram o olhar, curiosos, enquanto ele repetia:
– Esses não são meus números! Cadê os meus números?
E revirava a carteira, procurando. Um deles aproximou-se.
– Tá procurando o resultado? Eu anotei. – e entregou-lhe um canhoto de cheque onde se lia, perfeitamente: dois, quinze, vinte e cinco, trinta e sete, quarenta e cinco e cinqüenta e cinco. Em ordem, para não restarem dúvidas.
– Cadê meus números? Esses não são meu números!! – ainda perguntou algumas vezes, até dar-se conta de que a realidade agora era essa.
Ainda havia a esperança de que algum dos colegas tivesse jogado essa seqüência, porque não? Conferiu todos os jogos. Conferiu de novo. Nada. Nem um terno, um único terninho para contar história. Os colegas não entendiam sua desolação. Há quantos anos ele conferia os jogos?
Naquele dia, Oriel não teve ânimo para mais nada. Cumpriu suas tarefas mecanicamente, foi para casa, jantou e assistiu, no jornal, a notícia de que o prêmio acumulara novamente. Dormiu cedo, queria logo que o dia recomeçasse...
Na manhã seguinte, ao ser acordado pela mulher, perguntou, ansioso::
– Que dia é hoje?
– Sexta.
– É... – suspirou
– Que foi? – ela quis saber.
– Nada, não... Lembrei que a Sena acumulou. Vou ver se agito um bolão...

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 3.
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 15/10/2010
Alterado em 15/10/2010


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