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Tsunami


Graças ao alerta de tsunami enviado algumas horas antes do fenômeno, Dwijendra, sua família e os vizinhos conseguiram refugiar-se no templo, localizado em uma região mais alta da costa. Levaram consigo apenas algumas poucas peças de roupa, utensílios e mantimentos. Quando a enorme onda voltou ao mar, eles observaram, desolados, que a fúria das águas havia arrastado consigo tudo o que encontrou pelo caminho, inclusive o que ainda restava na lavoura para colheita e tudo o que já estava devidamente ensacado no celeiro.
O que salvaram na fuga seria suficiente para manter a subsistência dos aldeões por alguns dias, até que o socorro do governo chegasse. Porém, o mesmo terremoto que causou a onda gigantesca, arrasou outras regiões do país, de forma muito mais contundente e com números consideráveis de feridos e mortos. Todos os esforços de resgate, inclusive a ajuda internacional, estavam envolvidos nessas outras catástrofes, ficando o pequeno vilarejo à própria sorte.
Seguindo o rastro dos cereais deixado pelas carroças no caminho, algumas vacas também escaparam ao desastre. Por ocupar uma encosta escarpada do morro, o templo não oferecia muita opção de vegetação para que elas se alimentassem nem qualquer rota de fuga que não as conduzisse direto para as terras devastadas. Nos primeiros dias, os sacerdotes brâmames ainda lhes ofereceram alguns grãos, mas depois, cientes de que o resgate tardaria, tornou-se imperioso reservar os víveres para os humanos. Com o passar do tempo, mesmo para estes, a situação tornou-se crítica e as porções passaram a ser racionadas, até que acabaram-se de vez. Sem os barcos, totalmente destruídos no fenômeno, conseguiam pescar poucos peixes. Este era a único alimento que ainda lhes restava.
Dwijendra angustiava-se vendo os filhos chorarem de fome. Diariamente, ele e alguns vizinhos saiam à busca de alimentos, qualquer fruta silvestre que pudessem encontrar entre as pedras, algum broto do que antes eram bonitas plantações. Numa tarde, nada encontrando, voltava sozinho ao templo quando, em desespero, ajoelhou-se e orou a Vishnu por uma solução. Nem bem concluía suas súplicas, viu uma vaca cambaleando entre as pedras, até tombar, morta pela fome.
Sabia que as vacas eram sagradas, que representavam divindades, mas também sabia que os ocidentais alimentavam-se de carne bovina. E o que mais lhe importava naquele instante, era que, de fato, a morte do animal era uma resposta às suas preces.
Correu até o templo, em busca de alguns homens que pudessem ajudá-lo a levá-la para dentro, de forma a garantir uma melhor conservação de sua carne. Conhecia algumas técnicas do uso do sal para este fim, costumava usá-las no manuseio do pescado. Precisavam agir logo, enquanto a carne ainda estava fresca. Aquele animal abençoado lhes garantiria mais alguns dias de vida. Ao chegar, excitado, foi logo cercado por seus vizinhos que, movidos pela fome ou pela fé, preparavam-se para ir buscá-la, quando foram interrompidos pelos gurus:
– Vocês enlouqueceram? – disse o mais idoso deles. – Se estamos enfrentando essa fome é porque os deuses assim o quiseram. Shiva está agindo pela nossa renovação, pelo fim de nossos pecados.
– Mas, senhor – disse Dwijendra -, que pecados podem ter as crianças?
O sacerdote não respondeu. Encerrava ali a discussão, sem chance de argumentação.
Dwijendra ficou mortificado. Pensava nos filhos, na esposa... Não podia permitir que eles continuassem famintos, por um dharma que nem era mais tão respeitado em outras regiões do país, onde o crescente sincretismo vinha provocando uma abertura cada vez maior. Se não bastasse essa questão racional, havia ainda o fato de que o animal morrera ali, a poucos metros dele, justamente quando implorava aos céus por uma resposta.
À noite, foi até a carcaça e a destrinchou, separando os pedaços de carne e salgando-os. No velho silo semidestruído, dispôs os pedaços para secar ao sol. Reservou algumas peças para consumo imediato e as levou de volta ao templo, escondidas sob as vestes, para distribuir entre as famílias.
Ao chegar, dois dos gurus lhe bloquearam a passagem, exigindo-lhe sua preciosa carga. Depois, seguiram com ele até o silo e atearam fogo em tudo. O cheiro da carne queimando ardia nas narinas e na esperança daquele homem.
Na manhã seguinte, Dwijendra foi expulso do templo. De nada adiantou sua defesa, baseada na obviedade de que a vaca morrera ali por uma dádiva especial de Vishnu àquele povo sofrido.
Por sua heresia, dali em diante, seria considerado um dalit. À sua família foi dado decidir se o acompanharia em sua desgraça ou permanecia sob as bênçãos de Brahma.
Priyanka fora prometida a Dwijendra por seus pais, muito antes de se tornar uma mulher. Com o tempo e a convivência, aprendera a amá-lo e servi-lo, não apenas porque a lei assim o exigia, mas por conhecer nele uma generosidade e gentileza incomuns naquele meio rude em que viviam. Ao contrário da maioria dos casais de sua convivência, havia entre eles uma relação de muita cumplicidade e respeito. Para ela a escolha era fácil. Iria segui-lo onde quer que fosse, ao nirvana ou ao samsara. E, claro, levaria junto os filhos bem amados. Em vão, Dwijendra implorou-lhe que ficasse. Ela pegou os poucos pertences que salvaram da destruição e eles seguiram para suas terras devastadas.
Chegando lá, começaram a improvisar um abrigo onde antes era sua simpática casinha. Aproveitaram a estrutura e o material que a maré devolvera às praias. Assim, conseguiram recuperar um quarto, onde acomodaram-se para aquela noite. Dwijendra saiu para o mar e horas depois, voltou, trazendo consigo algum pescado. Não havia sementes para o plantio e era certo que nada brotaria ali, naquele solo estéril contaminado pelo sal do mar. Pelo menos, não enquanto as chuvas viessem lavá-lo.
Os dias iam se passando assim: muito trabalho na reconstrução da casa e a busca incessante por água e comida. Houve dias em que nada comeram, noutros, para beberem, ferviam a água do mar. E, porque outras vacas também morressem de inanição, houve dias em que comeram carne vermelha, implorando perdão aos deuses.
Preocupavam-se com a situação dos amigos no templo, mas nada podiam fazer. Agora que eram proscritos, ninguém falava com eles, mesmo quando se encontravam no mar, na pesca. Pareciam importar-se menos com os motivos que o levaram a confrontar os sacerdotes do que com o ato em si. Porém, numa bela manhã, foram acordados por alguns deles. Desesperados com a situação calamitosa que enfrentavam no abrigo e vendo que, embora precária, a situação de Dwijendra e sua família ainda era melhor do que a deles, resolveram ir ao seu encontro.
– Mas, vocês serão párias como nós! – argumentou Priyanka.
 Já somos. – responderam eles. – tão logo apresentamos nossa decisão de segui-los, eles também nos puniram.
Dwijendra e sua família ajudaram os aldeões na reconstrução de suas casas. Passados mais uns dias, outros se juntaram a eles. Enquanto isso, prosseguiam alimentando-se exclusivamente do pescado e de carne bovina salgada.
Ao fim da terceira semana, as chuvas vieram, lavando as terras áridas e logo, como que milagrosamente, pequenos brotos iam surgindo aqui e ali. A vida hibernara sob aquele solo maltratado.
Sem poder contar com o apoio dos aldeões na plantação e pesca, também alguns gurus vieram juntar-se a eles. Somente o brâmame mais idoso recusou-se a deixar o templo, onde suportou estoicamente a fome e o isolamento, até que, numa noite, em alucinações de febre, saiu de sua clausura e caminhou trôpego em direção ao vilarejo.
Foi encontrado pela manhã, inconsciente. Levado à casa de Dwijendra, recebeu todos os cuidados necessários e foi alimentado com brotos de cereais, peixe e leite de uma vaca que por lá apareceu e que parecia ter encontrado onde se alimentar durante essas semanas, pois estava bem forte e saudável. Nas poucas vezes em que esteve acordado, mostrou-se apático e delirante.
Ao final de quatro dias, ele finalmente voltou a si, para observar, horrorizado, onde estava.
– O que fizeram comigo? Vocês não podiam ter tocado em mim! Vocês são dalits – gritou, histérico.
Foi o pequeno filho de Priyanka quem observou:
– Agora, você também é um dalit...
O pobre velho chorava e balbuciava:
– É a desgraça, é a desgraça...
Os gurus o levaram de volta ao templo, completamente alienado. Nunca mais ele voltou ao normal.
O resgate nunca veio. Talvez as autoridades soubessem que aquele pequeno vilarejo era composto exclusivamente por dalits e um velho louco.
O mais provável é que entendessem que aquela comunidade era abençoada pelos deuses, que lhes entregaram suas filhas em sacrifício para a salvação dos fiéis.




Glossário (fonte – Wikpédia e HowStuffWorks):

Brâmame: é um membro da casta sacerdotal, a primeira da tradicional divisão em quatro castas da sociedade hinduísta. As outras três são Xátria, Vaícias e Sudras.

Dalit: são os "intocáveis" ou impuros. Estão abaixo da última das quatro castas da sociedade hinduísta. Os textos sagrados hindus os definem como a poeira aos pés do deus Brahma.

Nirvana: Na tradição hindu, o nirvana (mais conhecido como moksha) é a reunião com Brahma, o Deus universal ou alma universal. No hinduísmo tradicional, uma alma atinge este estado após viver muitas vidas, nas quais vai subindo pelo varna, ou sistema de castas.

Samsara: Na maioria das tradições filosóficas da Índia, incluindo o Hinduísmo, o Budismo e o Jainismo, o ciclo de morte e renascimento é encarado como um fato natural. Esses sistemas diferem, entretanto, na terminologia com que descrevem o processo e na forma como o interpretam. A maioria das tradições observa o Samsara de forma negativa, uma condição a ser superada.


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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 5.
Clique aqui para ver o tema - provocação.

Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 24/11/2010
Alterado em 24/11/2010


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