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Prato que se Come Frio


Ela jogou o pão sobre a bandeja, ao lado de um prato cheio de um creme escuro, feijão, talvez, de odor indecifrável.
Tirei um naco do pão muxibento. Estava morno, como se fresco fosse. Mas era óbvio que fora requentado. Minhas mãos trêmulas não conseguiram parti-lo. Fui obrigada a usar os dentes, os poucos que ainda me restam.
Sentia um cheiro desagradável, nauseabundo. Não sabia ao certo se vinha da comida ou do homem sentado ao meu lado. Talvez fosse o hálito podre do outro, que estava à minha frente... Depois, comecei a incomodar-me com a idéia de ser eu a sua origem. Tentei lembrar-me há quanto tempo não tomava um banho. Lavava-me, sempre que possível em pias de banheiros públicos de onde não me enxotavam com asco e também aproveitava-me da paz noturna para ter alguma privacidade nos laguinhos do parque. Mas, desde que o frio chegara, a idéia de tirar as roupas ao ar livre e mergulhar meu corpo decrépito naquelas água geladas era irracional ou deliberado suicídio.
Procurei desviar o pensamento. Mais tarde, tentaria os banheiros da UnB. Período de férias... Quem sabe?
Olhei novamente aquela gororoba ainda fumegante sobre a mesa... Enfiei a colher com pouca convicção, mas precisei de força para retirá-la em seguida, cheia daquele piche caroçudo. Não quis me dar a chance de desistir e enfiei tudo na boca. Era horrível! Um misto de feijão queimado com milho azedo. Tive ânsias de cuspir tudo de volta, mas não podia me dar a este luxo. Precisava comer. Precisava da energia para dar início à minha vingança. Todo o plano já estava traçado e, enfim, pronto para execução. Sorri, enquanto mastigava com dificuldade. Se o sabor era ruim, a consistência era ainda pior, uma viscosa massa de puxa-puxa. Tão logo achei que poderia, engoli aquilo tudo de uma vez. Nova ânsia, desta vez achei que regurgitaria. Segurei, orgulhosa da minha força, para ser atropelada pela constatação do quanto era humilhante estar ali, comendo aquela lavagem enquanto eles... Dei outra colherada, igualmente desagradável, mas ao rancor veio juntar-se a ira e engoli mais uma, com raiva. Dizem que o ódio cega. Posso afirmar: também elimina olfato e paladar. Talvez o sal das lágrimas que me vertiam pela pele rugosa tenha ajudado, ou apenas me acostumei com o gosto daquilo. Em pouco tempo, o prato estava vazio. Terminei de limpá-lo com o pão, que engoli também, sem prazer. Limpei o rosto com o pequeno guardanapo de papel... Lembrei-me dos guardanapos de linho fino, dos licores em taças de cristal, dos melhores cozinheiros, esmerando-se para conseguir um lugar em minha cozinha e essas lembranças feriram minha carne como as facas afiadas, de leitoso brilho de prata que eu usava então...
De repente, todas aquelas memórias, a ansiedade, o desgosto foram juntando-se àquele mondongo indigesto e uma dor que brotou no estômago deslocou-se ao peito, me tirou o ar.
- Não! - gritei ou quis gritar - Hoje, não! Preciso...
Senti que ia desfalecer...
- Ainda não! Eu tenho que...
Ainda tentei alcançar a mesa com as mãos, antes de desabar do banco como uma jaca podre.
- Preciso...
Pessoas me cercaram, no afã de ajudar ou apenas para terem o que contar à noite, aos outros desvalidos com quem partilhassem seus cafofos miseráveis:
- …preciso retomar o que é meu. Hoje...
Do radinho de um dos voluntários do Centro de Amparo, pude ouvir... Era inacreditável... Justamente, aquela música. Respirei fundo. Retomei o controle do meu corpo já franzino e esmaecido. Levantei-me, renovada. Agradeci e acalmei aos que me ajudavam... Não, não iria procurar um hospital...
Sacudi a poeira do corpo e caminhei em direção à porta. Decidida: primeiro um banho e depois... Ah! Que conforto pensar no depois... Saí, ainda ouvindo Alcione:

"Nada como um dia atrás do outro
Tenho essa virtude de esperar
Eu sou maneira, sou de trato, sou faceira
Mas sou flor que não se cheira
É melhor se prevenir pra não cair
Sou mulher que encara um desacato
Se eu não devolver no ato
Amanhã pode esperar
Estrutura tem meu coração
Pra suportar essa implosão
Que abalou meus alicerces de mulher
Mas a minha construção é forte
Sou madeira, sou de morte
Faça o vento que fizer
"


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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Aquela Música
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 14/03/2011
Alterado em 14/03/2011


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