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Mafalda

 
Irmã Lourdes acordou assustada com o telefone. Olhou o relógio: 3h15. Correu para atender, antes que a irritante campainha acordasse as crianças. Um dos pequeninos andava febril, se ele despertasse seria difícil fazê-lo dormir novamente.

- Lar do Pequeno Anjo, boa noite. – anunciou ao retirar o aparelho do gancho.

- Irmã? Sou eu! Mafalda.

Irmã Lourdes engoliu em seco. Tudo o que ela não precisava naquela madrugada era ter que falar com Mafalda. “Pobre Mafalda!”, pensou. Mafalda era uma pessoa egocêntrica, de gênio difícil, vivia às turras com todos à sua volta e, até por isso, era muito solitária. Claro que isso não lhe dava o direito de acordar quem quer que fosse no meio da madrugada como ela fazia às vezes, mas... Irmã Lourdes respirou fundo.

- Diga, Mafalda! Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

- Nem te conto! Ou melhor, deixa eu contar!

Irmã Lourdes sentou-se na cadeira dura ao lado do telefone e preparou o espírito para o rosário de estórias que, sabia, estava prestes a escutar. Coisas que absolutamente não lhe interessavam, mas não podia deixar de ouvir. Afinal, Mafalda era uma das patronesses do orfanato e dependia dela para a manutenção dos meninos. Ela conseguia sempre angariar fundos com o seu jeito atrevido e chato. As pessoas, para se livrarem dela, atendiam aos seus pedidos rapidamente.

Enquanto a outra falava sem parar, a freirinha pensava no dia seguinte. Tinha chamado o doutor Rubião, o pediatra que cuidava das crianças. A febre do menino não dava trégua, apesar dos chás e das mezinhas que lhe tinha aplicado. Era mesmo necessário que o médico viesse...

Perdeu-se imaginando a figura do doutor Rubião, e as apreensões que a assaltavam, às vezes.

O médico era meio descuidado, tinha uma aparência desmazelada, usava um jaleco encardido, onde sempre faltavam alguns botões. Mas isso não era o pior. Ela já ouvira histórias horríveis sobre ele, de crianças que tiveram complicações sérias após procedimentos simples realizados no consultório dele. Houve mesmo uma menina que quase perdeu a perna, infeccionada porque ele não fez a assepsia correta ao dar os pontos em um corte no joelho.

Por outro lado, sentia-se sem alternativas. Ele era o único que se propunha a atender voluntariamente as crianças no orfanato. Sem ele, a solução seria o falido sistema de saúde do governo e o trabalhoso deslocamento até um hospital público.

- E o doutor Rubião, hein? - Mafalda perguntou, parecendo adivinhar-lhe as angústias.

Com o susto, Irmã Lourdes quase deixou cair o telefone. “Santo Deus!”, tremeu. Parece até que Mafalda lera os seus pensamentos... Recobrada, deu finalmente atenção à sua interlocutora.

- Pois é! Ele vem aqui amanhã, ver o pequeno da Sebastiana. Lembra dela? A que fugiu com o...

Mafalda não a deixou terminar a frase, como de hábito. Não lhe interessavam as estórias em que ela não figurasse como personagem principal. E, depois, o assunto do médico, por quem nutria uma enorme admiração, lhe agradava muito mais. Era uma de suas matérias favoritas. Queria vê-la feliz, era dar-lhe trela nesse tema. E claro, louvando-lhe as qualidades, que só ela via.

Irmã Lourdes, sabendo disso, respeitava a amiga e assentia a tudo o que era dito dele, sempre a favor, que ninguém se atrevesse a levantar uma mácula sequer sobre a imagem do sagrado esculápio, que era Deus no céu e o doutor Rubião na terra.

Entretanto, a freira tinha lá as suas dúvidas, que com prudência guardava só para si.

Para além do aspecto repulsivo do seu físico, havia alguma coisa que a incomodava. Está certo que a figura não ajudava a criar simpatia por ele. Um homem alto e magro, um tanto curvado pelos anos, de andar arrastado e óculos na ponta do nariz que disputavam espaço com uma verruga enorme, grotesco berço de três pelos muito grossos e eretos. Era impossível falar com ele sem fixar os olhos naquela aberração. E as crianças? Sempre que ele ia vê-las, escondiam-se todas, a tremer de pavor, já antecipando a consulta. O médico entrava numa saleta preparada para esse fim e começava a chamar os internos, com voz cavernosa, pelo nome.

- Andrezito!

E lá vinha o garoto, com pernas bambas, esgueirando-se pelas paredes, como se quisesse desaparecer, entrar pelos tijolos. E sumia lá para dentro, a porta era fechada.

Irmã Lourdes ficava olhando aquilo, aflita. Já havia tentado acompanhar a consulta. O médico não permitia. Às vezes ouvia choro, mas os meninos nada falavam sobre o que acontecia naquele consultório.

- Dormiu, irmã? - a voz irritante de Mafalda a trouxe de volta de seus devaneios.

- Não... Eu estava pensando no...

- Ah, bom! - interrompia a outra - É que eu estava aqui contando sobre... - e desandava a falar de novo.

Irmã Lourdes se resignava. Olhava o velho relógio do corredor tiquetaqueando as horas de sono perdidas.

- Ai, irmã... Esta minha insônia me acaba, mas foi ótimo conversar com você... Está me dando um soninho! Acho que vou conseguir dormir um bocado agora.

Suspirando, a freirinha desligou o telefone. Teria um longo dia pela frente, sem chance de tirar sequer um cochilo. O relógio já marcava quatro e quarenta. Em mais alguns minutos iniciaria as atividades do dia e só poderia parar quando todos os seus anjinhos estivessem devidamente acomodados, alimentados, banhados, dever de casa feito. Isto nunca era antes das onze da noite.

Antes que pudesse se levantar da cadeira, o telefone tocou novamente.

- Alô, Lar do Pequeno...

- Irmã! Sou eu! Mafalda. Estava pensando... Tenho sentido umas palpitações ultimamente... não sei...

- Oh, Mafalda, isso pode ser grave. Na sua idade, bem vê... é preciso cuidado.

- Pois é, não queria ir ao Hospital, você sabe, não confio naqueles médicos. Para mim, não há como o doutor Rubião, mas ele só quer saber das crianças...

- Lá que é um bom médico, é... - timidamente, Imã Lourdes tentava colocar as suas dúvidas - mas, com os meninos, não sei...

- O que é que tem, com os meninos? - abespinhou-se Mafalda. Não podia ouvir que duvidavam da competência do clínico, que ficava logo enfurrunhada.

Sem querer incomodar mais a amiga, até porque ela se dizia doente, calou-se. Disse apenas, adivinhando os anseios da outra:

- Porque é que você não o procura, e pede pelo menos uma orientação, um encaminhamento? Ele é tão seu amigo...

- Você tem razão, Irmã. E olhe, vou aproveitar que ele está aí amanhã e apareço de surpresa.

- Amanhã? - perguntou a freirinha, vendo pela janela o dia que já clareava - Você quer dizer, hoje?

- Amanhã, claro! Eu ainda não dormi. Só é amanhã depois que eu acordar, ué! E por falar nisso, a que horas ele vai?

- Ficou de vir no final da manhã.

- Certo! Vou dormir um pouco, então. Lá pras onze eu apareço. Um beijo, irmã. Fica com Deus.

“Dormir... Palavra linda!”, pensou a irmã e nem se deu conta de que a outra não esperou sua resposta antes de desligar o telefone.

Levantou-se da cadeira, as pernas dormentes do frio e desconforto. Voltou até a cama, sentou-se na beirada... Porém, antes que tivesse chance de recostar um pouquinho, o pequenino da Sebastiana começou a chorar, esganiçado. Logo, outros lamentos juntaram-se ao dele. Irmã Lourdes fez o sinal da cruz, murmurou rapidamente a oração da manhã e seu dia começou.

Doutor Rubião apareceu por volta das onze e quinze. Logo assumiu seu posto e começou a atender os meninos. Pouco depois, chegou Mafalda.

Magra e muito alta, usava sempre uns vestidões meio hippies de algodão cru encardido, que lhe cobriam as sandálias até arrastar-se no piso, um jeito irritante, que dava vontade de lhe aconchegar a roupa ao corpo, prender um cinto, qualquer coisa que lhe reduzisse aquela aparência desengonçada, arrematada pelos cabelos desalinhados, um óculos que estava sempre a empurrar para cima, porque o nariz, pequeno, não os segurava. A visão que se tinha dela, olhando-a de frente, era a de olhos grandes, aumentados pelo grau dos óculos e, a seguir, olhos pequenos, com os óculos caídos. Era de enervar qualquer cristão.

Irmã Lourdes, acostumada com a amiga, já se tinha resignado com tudo isso mas, às vezes, traía o hábito que vestia e se descobria sem paciência para aturá-la. Aquele era um desses dias...

- Bom dia, Mafalda! Chegou na horinha. Vá lá, que o nosso doutor já está no consultório. - apressou-se em despachá-la.

Mafalda, com o seu passinho petulante, foi em direção à saleta onde o doutor Rubião atendia os meninos. Abriu a porta, sem bater.

Lá dentro, o médico, de costas, escondia com o seu corpo um menino franzino que gemia baixinho... Mafalda adentrou o recinto, já falando alto, como era costume:

- Doutor Rubião! Vim vê-lo, para...

O médico, num sobressalto, vira-se para ela... e ela vê o que nunca pudera imaginar nos seus piores pesadelos. Horrorizada, a mulher perdeu os sentidos. Caiu ao chão, e lá ficou, estatelada, com os olhos esbugalhados, e dura, sem se mexer.

O médico correu ao seu socorro e após o tratamento emergencial no hospital, levou-a para a sua clínica, onde ela permanece internada até hoje, catatônica, mexendo apenas os olhos, a boca aberta num esgar, por onde sempre escorre um grosso fio de saliva. Para completar o quadro, uma das mãos balança frenética no ar.

Doutor Rubião assumiu total responsabilidade pela pobre mulher, há muito abandonada pela família, que não lhe suportava mais os modos.

Seria um gesto até bonito do médico, não fosse o desleixo dele para com ela. A irmã, sempre que ia visitar a amiga, levava lençóis limpos e camisolas para substituir as que Mafalda usava. A freirinha incomodava-se de ver a outra lá, jogada sobre uma maca, as roupas de cama sempre muito sujas, bandejas com restos de comida das refeições anteriores deixadas quase ao lado de comadres usadas.

Numa ocasião, irmã Lourdes teve a nítida impressão de que Mafalda estaria tentando falar, a mão aflita apertando seu braço:

- Doutor, doutor! - chamou, excitada. - Ela está voltando!

Doutor Rubião veio logo ao seu encontro. Examinou o pulso da enferma:

- Não, não... Nenhuma alteração. Ela tem pesadelos. - disse ele, rudemente, e injetou alguma coisa na pobre mulher, que desfaleceu em seguida.

Argumentando falta de tempo, desde o colapso de Mafalda, doutor Rubião decidiu que não mais atenderia as crianças do abrigo, encaminhando, em seu lugar, a doce doutora Olívia, uma senhorinha grisalha com jeitinho de avó. Miudinha, gentil e muito competente, ela, em pouco tempo, conquistou a criançada, acabando com todas as verminoses renitentes, atualizando vacinas, controlando asmas e bronquites...

Passados alguns dias do incidente, Irmã Lourdes foi visitada por um sujeito, que depois de identificar-se, informou:

- Mafalda possuía um seguro em benefício do Lar do Pequeno Anjo.

Surpresa com a nobreza do gesto da amiga, Irmã Lourdes chegou a penitenciar-se de a estar sempre julgando:

- Puxa! Que delicadeza dela, lembrar-se das crianças...

- Bem... Sem querer decepcioná-la, irmã, ela só fez este contrato conosco para obter algumas vantagens no banco.

Irmã Lourdes ainda ponderou:

- Mas, pelo menos pensou em nós!

- Na falta de outro beneficiário...

- Como pode dizer isso dela, rapaz? - a irmã chocou-se.

- Desculpe-me, irmã! A senhora tem razão. Mas é que era uma pessoa tão difícil e irritante...

Irmã Lourdes quis concordar. Entretanto, achou melhor cortar o assunto. Independente das razões de Mafalda, aquele dinheiro vinha em ótima hora.

A partir daí, passou a visitar quase diariamente a amiga. Não só pela gratidão por seu gesto, mas porque, agora, catatônica e muda, Mafalda finalmente havia se tornado uma companhia um tanto agradável. Sempre que pensava isso, a religiosa rezava dez Pai-Nossos e dez Ave-Marias em penitência. E sorria, secretamente aliviada pelo silêncio da outra.

 

 

Nena Medeiros e Gy Emygdio
Enviado por Nena Medeiros em 12/08/2011
Alterado em 12/08/2011


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