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Independência ou Morte

Era invasão, sim, seu moço, mas todo mundo foi se arribando pra lá. Eu, com a mulher e os seis meninos é que não ia ficar debaixo da ponte.
Foi difícil, sim senhor! Tinha nada lá, não! Água era do poço, que nós mesmo cavemo, puxada na cacimba. A do córrego? Qual nada! Suja demais, doutor! Nem pra lavar calçada se ali tivesse alguma.
Seu Juca, coitado! Morreu agarrado no poste, puxando a gambiarra.
Depois, a gente ficou sem luz um tempão, o povo todo com medo de subir lá em cima e se esturricar igual seu Juca. Só quando a doida da Zefa ameaçou resolver o assunto é que os cabra macho ficaram macho de verdade e o Airton terminou o serviço do pai.
O esgoto corria nas ruas, fedia dentro das casas. Quando chovia não ardia tanto, mas nas estiage, seu moço, dava desgosto. A fedentina se espalhava igual notícia ruim, tirava o sono, o apetite, a saúde da gente.
Os menino, seu doutor, pejado de verme. As barrigona estufada. Dinheiro pro remédio? Dava não, doutor! Mal dava pra comer.
Mariinha foi a primeira a morrer. “Inanição” disse lá o médico. Palavra bonita pro bicho da fome, né não? Nem deu pra prantear a menina, que o Zezinho foi logo atrás da irmã. E depois, Joãozinho.
Ficaram só os três mais taludo.
Eu ia com os dois mais velho e a mulher catar lixo pra venda. A do meio ficava em casa, cuidando das coisas e do serviço. Pra quê, seu moço!? Quando a gente vive assim, feito bicho, acaba virando bicho também. O Antenor, bicho no cio, pegou ela, doutor. Pegou, fez o que quis, depois largou a coitadinha lá, muda. Fez tanta ameaça, o desgraçado, que ela nunca mais abriu a boca! Morreu triste, o olho parado no canto da parede. Dona Tonha viu o que o cabra fez e quando a menina morreu é que veio contar! Não pensei, não senhor! Pensar o quê?
Quando a velha virou as costa, fui lá e retalhei o sujeito na peixeira. Sobrou nada, não, senhor!
Por isso eu tô aqui, doutor. Enjaulado como o bicho que eu virei depois daquela desgraça. Moro lá, às margens do Ipiranga, mas independência, eu não conheço, não, senhor. Já a morte! Ah! Essa eu vi de pertinho, seu moço.


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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Às Margens do Ipiranga
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 03/09/2012
Alterado em 03/09/2012


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