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Uma Gotinha de Sangue


Verdinhus era o maior restaurante vegetariano da cidade. Vegetariano, não, porque os vegetarianos só não comem carne. O Verdinhus era vegano, um restaurante radical que não servia nenhum prato que levasse, em seu preparo, produtos de origem animal: nem carne, nem ovos, nem leite, nem nada! Os donos, dona Ceres e seu Pitágoras eram ambientalistas e protetores de animais, não gostavam que bichinhos inocentes sofressem para nos alimentar.
Demétrius era filho deles e gerenciava o restaurante. Numa manhã, ele terminava de organizar os pratos no aparador quando uma moça muito linda entrou no salão. Ela vinha hesitante, um jornal dobrado nas mãos. Usava sandálias rasteirinhas, um vestido longo e florido e, nos cabelos cheios e cacheados, presilhas de florzinhas. Parecia a rainha da primavera.
- Pois não? - perguntou ele, ansioso por poder ajudá-la.
- Oi, sou Artemis. Vim pelo anúncio. - sorriu ela, exibindo os classificados.
Há semanas anunciavam a vaga de nutricionista, mas ninguém era bom o bastante para a mãe do rapaz, que exigia que o candidato, além de ser um grande profissional, também fosse vegano.
Como os pais estavam fora, Demétrius ficou conversando com a moça e não precisou muito para que ele tivesse certeza: estava apaixonado. A moça era inteligente, divertida e gostava de várias coisas que ele gostava também. Nem precisava tanto: ela era linda, seu sorriso era mágico e ele seria capaz de jurar que a amava desde o instante em que ela chegou.
Então, ele ficou desesperado quando ela disse:
- Sabe? Esta é minha última chance. Se eu não conseguir este emprego, terei que seguir minha família, que se mudou para a Europa.
- Europa!? - perguntou. - Mas... Você é nutricionista! Você deve conseguir emprego em qualquer lugar!
- Sendo vegana? Quase impossível.
Era verdade. O restaurante da família de Demétrius era um dos poucos da cidade que seguia a linha radical e, certamente, em consultório, a maioria de pacientes quer carne no seu prato.
Se antes ele já queria, agora ele precisava que a menina fosse aceita para trabalhar com eles. Porém, ele sabia que o teste aplicado por sua mãe era severo e ninguém ainda havia passado. Aproveitando-se da ausência dela, o rapaz foi até a cozinha e, com muito jeitinho, convenceu sua tia, a cozinheira, a dar detalhes:
- Sabe o “guisadinho de soja”? - perguntou a tia.
- Hum! Adoro! - Demétrius lambeu os beiços.
- Pois sua mãe o contamina com sangue.
- Sangue!? Onde ela consegue sangue!?- ele perguntou, admirado, já que a mãe dele seria incapaz de ferir um animalzinho para conseguir uma gotinha de sangue sequer.
- É o dela mesmo. Ela fura a ponta do dedo com uma agulha e derrama um pinguinho na panela, durante o preparo. E ela entende que um vegano puro será capaz de sentir o gosto.
- Mas, isso é ridículo! Um pinguinho!?
- Já disse isso a ela, meu filho. Mas alguém consegue convencer a dona Ceres de alguma coisa?
Irritado com a maluquice da mãe, mas, ao mesmo tempo aliviado em saber que poderia ajudar sua amada a passar no teste, correu de volta ao salão e deu a ela todas as orientações. Ao experimentar o guisadinho, ela deveria cuspir tudo de volta no prato, fingindo-se enjoada.
Quando dona Ceres chegou, entrevistou Artemis. Ela gostou muito da moça, mas ainda precisava ter certeza de que ela seria a pessoa certa para trabalhar lá. Muito simpática, convidou-a para almoçar. Em seguida, deu algumas tarefas ao filho e foi para a cozinha.
Assim que a mãe virou as costas, Demétrius piscou para a garota, que piscou de volta, derretendo-o como sorvete vegano ao sol. Para não levantar suspeitas, ele foi tratar de seus afazeres, atento porém àquela mesa. Passados alguns minutos, um garçom trouxe a entrada: salada e, numa cumbuca, uma fumegante sopa de ervilhas.
Artemis comeu a salada, e já ia começar a sopa, quando a velha senhora aproximou-se com dois pratos na mão, ambos contendo arroz integral, legumes cozidos, grão de bico e o famoso guisadinho. Deu um à moça e sentou-se com o outro.
Sorrindo, Artemis tomou uma colherada da sopa, apenas para, em seguida, cuspi-la de volta, enojada, tossindo, os olhos marejados. Era uma atriz e tanto, pensou Demétrius, completamente horrorizado ao vê-la ser tão convincente... no prato errado!
Tudo perdido! A mãe perceberia a farsa e, certamente, não haveria nenhuma chance para a garota que ainda lutava para conter a ânsia de vômito.
- Parabéns, querida! Você passou no teste. - disse-lhe uma feliz dona Ceres. - Confesso que eu não acreditava em seu potencial. Sabe como é... Este seu nome não ajuda.
Artemis sorria amarelo, visivelmente nauseada, nem lembrava que seu nome era o mesmo da deusa grega da caça!
- E você, mocinho! - prosseguiu a empresária, chamando o filho. - Não gostei nadinha de saber que você queria me enganar!
- Eu!? - ele tentou disfarçar.
- Sim, espertinho! Eu cheguei justamente a tempo de ver sua tia, aquela linguaruda, contando o meu segredo para você! Por isso, contaminei a sopa e não o guisadinho.
Demétrius pediu desculpas à mãe e Artemis foi contratada.
Passados uns meses, eles se casaram e foram felizes para sempre.
Tudo graças à titia linguaruda. Ela nunca contou a ninguém, mas, naquele dia, percebendo a paixão do sobrinho querido, assim que viu a irmã mudando o prato do teste, derramou na cumbuca da sopinha, uma colher bem cheia de desinfetante.




Texto escrito para o Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Contos de Fadas da Dinamarca - Etapa 1.
Clique aqui para ver o tema - provocação.
Concorri com dois pseudônimos (com a autorização da organização):
Crisálida - fiquei em terceiro lugar
Pepeu - apesar de chegar até às finais com ele, desisti na última rodada, que coincidiu com a semana da possa na ALB/DF, evento que acabou me tomando mais tempo que o esperado. Este texto, assim como todos os que apresentei como Pepeu tem um viés de incentivo ao veganismo e à proteção animal.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 05/09/2012


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