Textos



Pegando Ondas
 
Camarão que dorme a onda leva
Hoje é o dia da caça
Zeca Pagodinho

A primeira me balançou. Tive medo, não fui. A segunda me arrastou um pouco, cheguei a tirar um dos pés do chão. Mas, olhando custo/benefício, me pareceu uma exposição desnecessária, não vi vantagem. Fiquei. Incomodada.
Precisava pôr pra fora e minha autocensura me tolhendo foi meu maior motivo. E, também, porque isso talvez ajude outras mulheres a falar também, mulheres que passaram por coisa pior, mais difícil de superar, que talvez precisem dessa catarse coletiva que torne mais branda essa dor. A dor de ser mulher e sentir-se caça, nesse mundo de predadores.
Você já entendeu que não estou falando de ondas do mar, mas de movimentos feministas. São ondas de depoimentos que buscam a empatia entre nós e a deles, para que o machista que não se reconhece machista possa compreender como suas atitudes nos machucam e para que todos possam entender porque esta luta ainda se faz necessária, 105 anos após a instituição do Dia Internacional da Mulher.
A primeira onda foi a #meuprimeiroassedio. Se eu tivesse ido nessa, contaria que o meu primeiro assédio foi muito cedo. Não sei precisar a idade, mas era ingênua o bastante para seguir um vendedor de balinhas até uma portaria de um dos prédios da cidade, onde, nas escadas, ele enfiou o dedo áspero e seco em minha calcinha, acariciando minha virilha. Foi pouco, diante de tantos relatos horríveis que li, levados por essa onda ou antes dela, em confidências de amigas. Sim: amigas, no plural. Vítimas de estupro consumado ainda na infância. Uma delas dizia, com humor amargo, nunca ter denunciado o agressor, um parente, para não ser reconhecida como a boneca Estupradinha da Estrela, na pequena cidade onde cresceu. E essa é uma das principais razões da campanha - nos livrar dessa culpa, dessa vergonha do rótulo que nunca pedimos para ter. Deixar claro para nós e para eles que, se alguém merece uma marca na testa é o estuprador. À vítima, todo o respeito e apoio. Sempre.
Meu segundo assédio aconteceu poucos anos depois, na casa de uma vizinha. Fiquei sozinha até mais tarde com um tio dela, assistindo algum filme na TV. Ele bebia todo o tempo e, de repente, jogou-se em cima de mim, apalpando meu corpo de criança, tentando tirar meu pijama e me beijar a boca. Bêbado demais para conseguir uma ereção ou ainda razoavelmente sóbrio para perceber a estupidez do seu ato, ele desistiu e me deixou fugir para o quarto da minha amiga, onde passei o resto da noite encolhida, chorando de medo e nojo. Jamais falei com ninguém sobre esses dois episódios. Nem os esqueci.
O terceiro foi um oftalmologista, que roçava-se em mim durante o exame. Este era flex. Também tentou bolinar meu irmão mais novo.
São doentes os homens que fazem isso ou apenas sentem-se seguros para dar vazão a seus desejos impróprios pela certeza da impunidade, garantida em muitos casos pela dificuldade que a vítima tem para lidar com o ocorrido, denunciar?
Meu quarto assédio foi coletivo, o que mostra esse curioso - embora não menos nojento - fenômeno: o efeito manada ou a dificuldade de imputar culpa quando esta é da multidão.
Sim... Como muitas mulheres, não gosto de festas de rua, shows e outras grandes aglomerações, desde aquele carnaval em que pulava no Eixão com amigos e acabei me afastando deles por instantes. Sozinha, meu corpo virou objeto público, vários homens se acharam no direito de me passar a mão.
Que prazer tem um homem em tocar uma mulher sem sua permissão? Que sensação pensa ele provocar quando faz isso? Provavelmente, esta não é a preocupação da maioria dos que agem assim, acostumados a ver-nos como objetos, criadas para servi-los e sermos por eles subjugadas.
Meu quinto assédio foi num estágio, quando o chefe me seguiu a caminho do banheiro, me imprensou contra a parede, esfregou-se em mim, buscando minha boca com a dele. Gritei, fazendo-o recuar. Pedi demissão em seguida e, desempregada, quase precisei trancar a faculdade. Sobre isso eu já escrevi, talvez empoderada pelo fato de ser um assédio sexual em ambiente de trabalho, prática algo mais combatida.
Por outro lado, num outro estágio, meu supervisor virou uma fera quando um fornecedor me olhou de cima abaixo e disse a ele:
- Tá bem servido, hein!?
Sim… É preciso que fique claro. Elogios ao nosso corpo, nossa aparência são bem vindos quando educados e gentis. Alguns homens não entendem isso. E quase todas nós já baixamos os olhos, constrangidas por comentários grosseiros e vulgares.
Não nego o pequeno gostinho de vingança dado por aquela moça bonita que passou por nós num bar e, ao ouvir um “ô, tesão” vindo da mesa ao lado, respondeu, sem se virar ou reduzir o passo “dá, que passa!”, fazendo o bar inteiro rir do sujeitinho inconveniente. Mas não é isso o que queremos. Não é nos igualar a eles nas baixarias, mas saber que seremos respeitadas. E, mesmo que o cara fale essas bobagens sem intenção nenhuma de forçar a mulher a nada, ele já a está forçando. No mínimo, a ouvir sua opinião não solicitada sobre ela.
A segunda onda, #meuamigosecreto nos incentiva a expor o machismo que quase todo homem ainda exibe, desde a crença de que são exclusivamente delas as tarefas domésticas - inclusive o cuidado dos filhos -, passando pela tendência de subestimar sua qualificação profissional, até o perigoso direito de julgar uma mulher por sua roupa ou modos, chegando ao extremo de achar-se no direito de agredi-la ou assediá-la, por acreditar que ela "está pedindo isso".
Menos chocante, esta marola enorme incomoda ainda mais, ao expor homens de nosso convívio: cônjuges, professores, chefes, pais, irmãos, colegas... Por isso, não me deixei levar. Ainda.
Mas, o pior, foi perceber que, muitas vezes, #meuamigosecreto somos nós mesmas, repetindo gestos e comportamentos aprendidos durante toda a vida e nos sabotando diariamente na nossa condição feminina.

 
Texto publicado (versão reduzida) no jornal Alô Brasília de hoje.
 
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 04/12/2015
Alterado em 09/12/2015


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