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Na Hora do Almoço
Cláudio desligou o telefone sorridente e esfregou as mãos, de satisfação. Há dias, tentava combinar o joguinho de peteca na hora do almoço, mas sempre acontecia algum imprevisto com algum dos amigos e o programa acabava adiado. Quando não era isso, desaguava aquele toró e eles desistiam da idéia, sendo obrigados a procurar um bom restaurante, ao invés de irem para o clube. Desta vez, tudo parecia correr bem. Todos estavam dispostos a jogar e o tempo amanhecera simplesmente fantástico. Aquele céu de um azul claro tão limpo e profundo que parecia a época de seca. Mas não era. Ainda estavam em fevereiro.
- Culpa do el niño, o tal fenômeno que aquece as águas do Pacífico e muda o tempo no mundo inteiro, disse-lhe a colega, Adriana, num dia em que ele praguejava contra o calor infernal.
Gostou do jeito professoral dela e decorou a frase. Sempre que pensava em clima, lembrava-se da mocinha de óculos grandes, desproporcionais ao rostinho miúdo e muito branco, dando-lhe aquela informação como quem compartilha um segredo.
Retomou o trabalho animado, enquanto cantarolava a musiquinha de uma propaganda de cerveja que ele ouviu no rádio-relógio ao acordar de manhã, e que não saiu de sua cabeça desde então. Conferiu o relógio: onze horas e trinta minutos e o chefe já tinha saído para o almoço. Pensou:
- Esse aí é um bom vivant... quisera eu já poder estar no clube a esta hora...
Olhou novamente o céu e viu uma grande e gorda nuvem de chuva. Não acreditava no que estava vendo!
- Não é possível que São Pedro vai fazer uma sacanagem dessas comigo...
Correu até a janela para verificar o que estava vendo e percebeu, aliviado, que a nuvem em questão era solitária e já estava sendo rapidamente empurrada pelo vento, rumo ao sul, direção inversa à do clube. Ficou mais alguns minutos admirando a paisagem. O prédio, novo, tinha uma localização privilegiada.  Sobressaia-se sobre seus vizinhos mais baixos e, os ocupantes dos andares altos, como o dele, tinham uma excelente vista da cidade, que incluía o lago e toda a área verde circunvizinha, até sumir no horizonte alto e irregular.
Também fora Adriana quem lhe revelara uma vez:
- Brasília foi construída dentro da cratera de um vulcão extinto, por isso tem morro por todos os lados...
Sorriu e virou-se, afastando-se da janela, disposto a fazer mais algumas coisas antes de sair. Foi quando ouviu. Era baixinho e abafado, mas estava lá. Primeiro um soluço. Depois, uma discreta fungada. Alguém estava chorando em alguma janela próxima. Instintivamente, voltou e colocou a cabeça para fora, procurando descobrir de onde vinha aquele som. E recuou horrorizado quando a viu lá fora. Bateu as pernas numa cadeira e caiu sobre ela, assustando Adriana que olhou para ele espantada, os olhos bonitos escondidos pelas lentes dos óculos que refletiam a tela do computador:
- Cláudio!? O que houve?
Olhava para ele ali, sentado, agarrado à cadeira, os olhos escancarados, a mão trêmula apontando a janela. Ela levantou-se e encaminhou-se para a janela, quando ele a impediu com um puxão. Ele tentava falar e, lutando contra a adrenalina, soltou a frase num único fôlego:
- Tem uma mulher na janela, do lado de fora. Acho que vai pular. Chama a polícia!
Adriana não podia acreditar e resolveu conferir. Realmente, havia uma moça lá. Ela fez o sinal da cruz e correu ao telefone. Estacou com o aparelho na mão, o dedo pairando indeciso sobre o teclado numérico. Não lembro o número... 911, não, droga de cinema americano! Eu quero o número da polícia brasileira! Pensava agitada, enquanto procurava um catálogo telefônico.
Cláudio, finalmente, conseguiu recuperar parte do autocontrole, do qual sempre se vangloriava e caminhou ansioso até a janela. Temia que, a essa altura, a moça já tivesse pulado. Encontrou-a lá, placidamente sentada na ínfima marquise, segurando-se na moldura da janela vizinha. Parecia olhar a paisagem, enquanto chorava baixinho e parecia indiferente a ele ou a tudo o mais. Pegou a caixa de lenços de papel da mesa do chefe e voltou à janela. Retirou alguns com cuidado e, debruçando-se, perigosamente, os ofereceu a ela. Ela não percebeu, então, ele a chamou:
- Oi...
Ela levantou os olhos vermelhos e inchados e ao vê-lo, abriu o mais maravilhoso e triste sorriso que Cláudio já pudera ver. Ofereceu novamente o lenço:
- Acho que você está precisando...
Ela trocou a mão com a qual se segurava e, esticando-se suavemente, pegou-os da mão dele. Limpou os olhos e assuou discretamente o nariz. Usava um gracioso vestido branco, meio esvoaçante e transparente, que combinava com o dia claro e quente. Estava descalça, provavelmente os sapatos haviam ficado no ambiente cuja janela ela atravessara, para estar ali. Também não carregava uma bolsa. Cláudio não sabia o que fazer. Esperava que a polícia chegasse logo. Mas não podia ficar parado, esperando, vendo-a, a poucos centímetros da morte certa. Precisava puxar conversa, ganhar tempo, quis ser engraçado:
- Tomando um ar fresco?...
Ela olhou para ele como se olhasse um alienígena. Sorriu novamente. Ele pensava:
- Idiota! Se eu estivesse aqui fora, louco para pular lá embaixo, esta pergunta ia ser um empurrão...
Tentou sorrir também, mas tinha a impressão de que seu sorriso ficava cada vez mais falso e tenso.  Falou
- Por que você não vem para dentro? Ainda tem café aqui...
Ela balançou lentamente a cabeça:
- Desculpe, não tomo café.
- E uma agüinha?
- Estou bem aqui, obrigada.
- Você vai se matar?
Ela olhou pra baixo, tristemente. Ele tomou isso como um sim e continuou:
- Por quê?
- Perdi a confiança nele...
- Você encontra outro...
Ela sorriu.
- É seu marido?  – lembrava-se da piada: “Deixa disso Manuel... eu te botei foi chifre, não foi asa não!”. Tentou reprimir o riso.
Ela olhou para o outro lado. Percebeu que o choro recomeçava, um pouco mais forte.
- Será que não tem outro jeito? Já tentou conversar com ele?
- Você não entende... Ele jamais me ouviria...
- Deve haver um jeito...
- Não há...
- Por que você não confia mais nele?
- Oh! É tudo tão diferente do que eu esperava... A minha vida é só trabalho, cuidando dos filhos dele... Eles são difíceis, teimosos...  Eu cansei, sabe?
- Ele tem filhos?
- Ele os deixa fazer o que bem querem.
- E você? – lembrou-se da música “aí, a criançada toda chega e eu chego a achar Herodes natural”.
- Eu não.
- Você queria?
- Que idéia boba! Claro que não!
É, faz sentido... Eu também não ia querer filhos, se vivesse com alguém que tivesse alguns pestinhas como os que ela descreveu... Pensou, mas não disse. Discretamente, olhou as horas... Nada da polícia. O telefone tocava. Devia ser algum dos amigos, irritados porque ele ainda não estava no clube. Continuou aquela conversa. Precisava ganhar tempo. Começou a dizer-lhe todos os chavões que conhecia, sobre a importância do amor, sobre como era bonito poder amar e dedicar-se ao outro, falou-lhe de confiança... A cada baboseira sentimental que proferia, seus pensamentos o traíam. Lembrava-se do casamento desfeito, dos filhos. Sentiu saudades deles. No final de semana faria uma visita. Desde que a ex-mulher os levara para Goiânia, há quase dois meses, nunca mais os vira. Apenas se falavam por telefone. Lembrou-se da própria infância, o pai tão querido, tão próximo, ensinando-lhe as coisas. Fora com o pai que ele aprendera a fazer e soltar pipas, a nadar, a andar de bicicleta... Era o pai que se sentava com ele, após o trabalho, para conferir o dever de casa... Sentiu vergonha de não ser assim para os próprios filhos. Continuava falando:
- Você precisa entender... Se ele deixa os filhos com você, é porque confia em você...
Mas seus pensamentos voavam em coisas há muito esquecidas... A família... Seus muitos sonhos desfeitos... As mulheres da sua vida, as traições:
- Eu acho que vocês precisam conversar...
A falta de diálogo que o levou a afastar-se da mãe, quando o pai morreu...
- O amor vence qualquer barreira...
A irmã, que casou com aquele outro imbecil que ele não suportava e a quem nunca visitava... Solidão. Começava a perceber toda a sua solidão...
Adriana estava ao seu lado e ouvia, embevecida, tudo o que ele dizia... Ela sabia tantas coisas, estudava tanto, mas jamais saberia falar como ele... Quando se conheceram ele ainda estava casado. Gostou dele imediatamente, aquele sorriso franco, a maneira respeitosa com que a tratava, o bom humor constante. Às vezes, ele chegava com flores para ela... dizia que eram para enfeitar o ambiente. Sempre cantando, na maior parte das vezes, só o refrão de músicas que ouvira no caminho. Só o viu triste duas vezes: no enterro do pai e depois, nos dias subseqüentes à separação.  Quando as crianças foram embora, ele estava de férias, mas ela está certa de que ele também sofreu muito.  Não era de se espantar, vê-lo ali, falando tantas coisas profundas sobre a vida e o amor, para aquela estranha maluca e tão linda, que parecia estar disposta a pular mesmo dali. E a polícia que não chegava...
De repente, a moça levantou-se com uma agilidade impressionante e ficou ali, apenas os calcanhares apoiados, o corpo grudado na parede, a mão ainda segurando a esquadria da janela:
- Você diz coisas lindas que não sente, posso perceber em seu coração...
Cláudio precipitou-se, tentando ampará-la. Adriana gritou. Mas ela parecia bem equilibrada ali naquele ponto e eles voltaram a se acalmar. Ela prosseguiu:
- Mesmo assim foi bom ouvi-las... Sinto-me bem melhor agora. Mas não posso me deter mais. Tenho que ir.
Eles gritaram juntos:
- Não! Espere!
Ela inclinou o corpo para frente, como quem pretende saltar da ponta de um trampolim. Cláudio conseguiu alcançar-lhe o braço e surpreendeu-se com a delicadeza daquela pele tão fria e, ao mesmo tempo, tão firme contra a sua. Era realmente uma mulher fascinante e Cláudio estava agora, decidido a não deixá-la morrer. Sentia como se a conhecesse há milênios, desde outras gerações... Tocando-a, sentia-se em paz... E com aquela sensação de segurança, apoiou-se na janela em que se encontrava e saltou-a, com cuidado, apoiando-se na marquise, como ela fazia. Desta vez, ambas soltaram um sonoro “não!”, enquanto ele se desequilibrava e em seguida, conseguia encontrar um ponto de apoio.
Se vê-la fazendo aquilo era assustador, fazê-lo era apavorante. Olhava para baixo e sentia a vertigem. Então, tentava olhar fixamente nos olhos dela, tentando não pensar na loucura que estava fazendo. Ela sorriu:
- Por que você fez isso?
- Não queria que você pulasse...
- Eu não ia pular.
- Não? Então o que estamos fazendo aqui? Vamos para dentro.
- Não posso. Tenho que ir... Mas você deve entrar.
- Para onde você vai?
- Preciso retomar minha vida...
- As crianças? Deixe-as para ele, ele que cuide delas!
- Oh! Não diga isso... Ele precisa de mim. E elas também... – e foi delicadamente empurrando-o de volta para dentro, indiferente aos seus protestos...
- Eu também... Preciso desesperadamente de você, da paz que você me transmite, dos sentimentos bons que você me fez sentir...
- Sim, Cláudio... Eu sei... Você também é uma das crianças dEle... Vá, procure seus filhos, sua mãe, sua irmã, aquiete sua alma que seu lugar está seguro ao lado dEle e ao meu. Terá valido meu dia se ao menos eu também puder ajudá-los.
E dizendo isso ela deu um último significativo sorriso para Adriana e saltou. Eles ainda tentaram agarrá-la pelos calcanhares, mas tudo foi muito rápido. Ela lançou-se para frente como num longo mergulho e depois abriu as enormes asas douradas que a alçaram de volta até a altura da janela. Sorriu novamente para os dois e partiu.
Eles ficaram alguns segundos olhando boquiabertos enquanto ela desaparecia no brilho do sol. Grossas lágrimas corriam dos olhos dele e Adriana tomou alguns dos lenços da caixa jogada no chão para entregar-lhe. Ele agradeceu meio sem jeito, limpou o rosto e deu um passo cambaleante para trás, recostando-se no peitoril da janela. Ao vê-lo recuar, ela apavorou-se achando que ele iria cair e o agarrou pelos braços. A desproporção dos corpos foi suficiente para que ela acabasse por tombar sobre ele que por sua vez a abraçou para que ela não caísse. Os dois ficaram abraçados, recostados na janela olhando-se como se nunca tivessem se visto. Ela tirou os óculos, agora embaçados por suas próprias lágrimas, expondo-lhe seus lindos e grandes olhos azuis. Vista assim, tão de perto, e sem aqueles óculos horríveis ela era linda como ele sempre imaginara e, não resistindo, ele a beijou. Ela não esperava aquilo, mas, afinal de contas, ninguém esperava ver um anjo pendurado na janela da sala ao lado, então, ela entregou-se àquele beijo tão sonhado.
No céu, um anjo sorriu feliz, com o sorriso mais puro e lindo do que o de qualquer criança na terra. E suspirando, entendeu que sua missão, dali em diante, poderia, afinal, não ser tão inútil como ele pensara.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 09/03/2008
Alterado em 10/06/2010


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